Qual o seu Ponto de Vida?

Qual o seu ponto de vida agora?

Sim, você leu corretamente; não foi um erro de digitação e não quis dizer “ponto de vista”.

Mas, já parou para se perguntar, afinal, em qual ponto de vida você se encontra agora?

Passei uma parte do primeiro semestre de 2025 convidando algumas mulheres a se perguntarem exatamente isso, a partir de seus autorretratos. Além de buscar a resposta pela conversa e pelo olhar, convidei-as também a buscar a resposta nas mãos, pela intervenção do bordado sobre o retrato produzido. E ali se revelou muito das histórias armazenadas, muitos dilemas do presente e sonhos de futuro – sobrepostos nos traços, nos gestos estampados na fotografia delas, e materializado na costura do bordado simbólico depois.


A professora e poeta Leda Maria Martins tem uma pesquisa muito bonita sobre a concepção de tempo para povos originários e africanos – e trabalha com o conceito de “tempo espiralar”, numa resposta ao tempo cronológico ocidentalizado, formado da cadeia de vários antes e depois, em uma lógica de sucessão. Ela chama a atenção para a maneira, inclusive, como a nossa língua está marcada por uma epistemologia de compreensão do tempo, ao nos referirmos ao passado:

  • Pretérito mais que perfeito – o absolutamente finalizado e distante de nós;

    

  • Pretérito perfeito – o acabado, ainda que recente

  • Pretérito imperfeito – o inacabado, o que ainda poderia retornar talvez ao nosso presente.

Curioso, né? Confesso que não tinha atentado a isso, mas compreendi muito bem a defesa de Leda, sobre o quanto somos moldados na nossa cosmopercepção.

Pois bem! Na cosmopercepção de tempo espiralar, não existe o inacabado e nem o finalizado. O presente não é um intervalo entre o passado e o futuro, mas sim o encontro de todos os tempos. É um princípio de simultaneidade, em que tudo o que existe, existem em processo de transformação e presença ininterruptamente, e o “ancestre” traz em si o tempo acumulado de passado, presente e mesmo de futuro.

Para ela, ainda, nossa dificuldade branca é tão grande que, no máximo conseguimos realizar pequenos movimentos espiralais e rompimentos com o tempo cronológico em pequenas contingências – dormindo e sonhando, por exemplo; ou numa dança, ou ainda no próprio exercício do processo criativo. São formas de rompimento com o tempo instituído, mas que devemos ampliar para compreender e poder experienciar verdadeiramente a espiral do tempo.

Dito tudo isso, voltemos ao Ponto de Vida.

A provocação dessa pergunta é exatamente a provocação para a conjunção de tempos e espaços que formam a sua vida. Suas memórias, sua vida atual, suas vontades futuras, dadas todas por contextos criados por você ou inseridos à sua revelia pelos acontecimentos da vida.

No exercício do ponto de vida, o convite é de rompimento com a linearidade do tempo, e a atenção à confluência de tudo o que te constitui: um convite também para aprender com o olhar para a complexidade do presente acumulado e possível, aprendido de outras culturas que se posicionam no mundo com outras lógicas possíveis e que têm muito a nos ensinar sobre essas percepções. Nos furos e nos pontos do bordado, poder reencontrar-se consigo e com tantas camadas sobrepostas de vida que nos constitui.

Resolvi eu mesma fazer a experiência que tinha proposto às mulheres, e voltar a atenção ao meu Ponto de Vida.

Foi interessante a escolha do retrato porque não fiz uma foto, assim como havia convocado as mulheres com quem trabalhei. Resolvi intervir sobre uma fotografia tirada pelo meu irmão num passeio que fizemos juntos, em 2021. Foi um ano muito difícil aquele, e o retrato foi feito poucos meses depois de perder minha irmã. Eu estava de luto, mas estava numa conversa interior profunda sobre a eternidade e a presença naquele momento.

Árvores são símbolos pessoais para mim há mais de quinze anos, não nego. Em 2021, foi um prazer encontrar essa paisagem enquanto caminhava, e imediatamente quando vi, pedi que meu irmão tirasse a foto (mesmo sendo eu meio avessa a retratos).

Agora voltei a essa foto, e quis que fosse ela o meu ponto de vida, porque exatamente o tempo não é linear. Quatro anos não alteraram a pessoa que eu sou ou que quero ser. O que mudou (ou se fortaleceu) dentro de mim foi justamente a conversa sobre existir.

Quis bordar essa foto porque nela tem uma memória específica, um presente que trabalho em mim, para continuar a sonhar o futuro – a busca pela autoconsciência e o reconhecimento do chão da realidade como lugar para habitar.

A escolha das cores, os pontos, a intensidade do fio... tudo foi pensado para reafirmar simbolicamente o lugar que quero conquistar – o chão. Mas sem deixar de pensar e viver a dificuldade de esculpir a coluna que é o tronco e a força necessária para fincar raízes.

No meio do processo de bordado do tronco, a linha acabou. Tive que pausar e procurar pela linha idêntica.

O bordado me esperou.

Curioso como o fazer nos coloca para conversar com outras camadas de significados. Não poderia ser qualquer cor, tinha que iluminar o tronco. E tinha que ser forte, nada de um fio só da meada. Vários pontos, vários furos e camadas de linhas sobrepostas.... porque acho que é assim mesmo que formamos coluna na vida – sobrepondo, machucando um pouco, costurando(-nos) e brilhando...

Quanto ao tempo da realização, concordo totalmente com a Leda: são contingências que nos tiram do tempo como sucessão, do tempo cronológico avassalador das tarefas. Mas essas contingências precisam ser alimentadas no cotidiano.

Ratificar ou retificar a existência que temos é um chamado interior permanente, a partir das memórias, dos gestos, do pensamento e do espiralar da dança do tempo... e seu ponto de vida é sempre o encontro mais íntimo de tudo o que já foi, é e ainda pode desejar ser da sua existência.

Enquanto contemplava a foto e pensava caminhos para o bordado, deixei cair um tanto de café em cima, aí no canto inferior direito, bem onde você vê essa manchinha.. Mas não quis abandonar o projeto por causa disso. Não considero uma sujeira, no fim das contas, mas sim resultado (com um pouquinho de desastre) de um tempo de contemplação e de quebra do próprio tempo… achei poético.

Se você chegou até aqui na leitura, posso, então refazer a pergunta do início:

E aí? Qual o seu ponto de vida agora?

Que tal voltar sua atenção ao que tem confluído para a sua existência ser só sua?

***

Para saber mais sobre o pensamento de Leda Maria Martins:




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